Série “Mulheres Fortes que Conheci”: Episódio Dona Sílvia

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Passarei a compartilhar uma série de episódios da sequência “Mulheres Fortes que Conheci”. Com nomes fictícios, a ideia é inspirar cada uma com trajetórias de vida emocionantes, além de instigá-las para a mudança que cada uma entende como necessária – e que pode ir ao encontro das histórias aqui retratadas. Com vocês, o primeiro episódio:

Dona Sílvia tinha completado 81 anos naquele mês e naquele dia resolveu deixar a tristeza de lado e sair de casa. Seu neto Mateus havia dado de presente pelo aniversário uma micropigmentação de sobrancelhas. Ele sempre soube que mesmo com idade avançada ela ainda continuava uma mulher vaidosa, então deixou em sua cabeceira o nome e endereço do estúdio da profissional, avisando que havia deixado pago para que ela não tivesse desculpas para não ir. Ele queria animá-la um pouco.

Conheci Dona Sílvia porque, na época, dividia espaço com minha filha Manuela Starry – a micropigmentadora em questão – no bairro Petrópolis, em Porto Alegre. Nosso primeiro contato foi na sala de espera, enquanto ela aguardava para ser atendida e eu aguardava uma de minhas clientes. Conversamos um pouco, lhe expliquei sobre o meu trabalho e ela, após o procedimento com a Manu, resolveu voltar uma vez por semana para seguirmos conversando.

Dona Sílvia estava ainda muito triste com a perda de seu filho Jorge, de 52 anos. Fazia menos de um ano que Jorge havia recebido um transplante de coração, porém houve rejeição e ele veio a falecer pouco tempo depois. Em nossas conversas, Sílvia me contava sobre sua vida, suas perdas, tristezas e alegrias ao longo dos anos.

Nos encontrávamos às terças-feiras pela manhã. Em um de nossos primeiros encontros me contou que na infância tinha sido doada para um casal. Nunca soube porque a mãe não ficara com ela, nem sequer a conheceu. Nasceu no interior do Rio Grande do Sul e viveu na mesma cidade até os 18 anos, quando “ganhou o mundo”, como falava. A família com quem viveu nunca a tratou como filha ou mesmo como membro da família, e sim como uma criada. Desde que chegou na casa, aos 5 anos, já fazia trabalhos domésticos. Nunca recebeu carinho, apenas abrigo e alimentação. A infância passou por ela sem que se desse conta.

Quando fez 18 anos juntou suas economias – dinheiro que ganhava com costuras a mão que fazia para os vizinhos – e veio para a Capital do RS. Em Porto Alegre, fez de tudo um pouco para sobreviver: trabalhou como faxineira, babá, cozinheira e “cobradora de conta” – isso mesmo, essa profissão existia e era assim denominada, exercida por pessoas que iam de porta em porta para cobrar os devedores de lojas e estabelecimentos que os contratavam. Geralmente os cobradores iam vestidos de vermelhos dos pés a cabeça para gerar constrangimento nos “maus pagadores”. Ela gostava do que fazia pois amava “bater pernas por aí”.

Casou-se com um homem que logo no início mostrou-se um bêbado mulherengo, que não disfarçava suas aventuras. Passava noites fora de casa e voltava exausto para curar seu porre. Mesmo assim ela teve três filhos com ele antes de decidir “desquitar-se” uma decisão difícil para a época. Perdeu a filha mais velha com 17 anos. Nunca quis remexer nessa história, apenas mencionou em um de nossos encontros, não me contou mais e eu respeitei não perguntando.

Aos 44 anos, em uma de suas idas e vindas do trabalho, foi atropelada por um ônibus, no corredor da Av. Bento Gonçalves. Teve traumatismo craniano e muitos ossos quebrados. Recuperou-se depois de muitos dias internada e meses de fisioterapia. Quando Sílvia me falou de sua tristeza recente pela perda do filho, me disse que estava desgostosa com sua religião (não com Deus). Parou de frequentar uma casa espírita a qual ia, na qualidade de trabalhadora voluntária, mas disse que perdeu a motivação e não sentia-se apta a ajudar ninguém naquele momento. Ao mesmo tempo em que externava sua grande tristeza, eu podia ver naquela mulher uma tremenda força e uma fé inabalável que a fazia levantar todos os dias e seguir adiante. Eu me sentia pequena com meus conhecimentos limitados sobre a vida diante daquela fortaleza em minha frente, mas lançava mão de tudo que sabia para fazê-la sentir-se melhor.

Dona Sílvia é uma mulher pobre, vive de sua aposentadoria – que é um salário mínimo -, sua filha mais nova (a única dos 3 que sobreviveu) é funcionária pública e a ajuda, cuida dela à distância, pois dona Sílvia não abre mão de morar sozinha, mas passa os finais de semana com ela em seu apartamento na Zona Sul de Porto Alegre. Na sexta-feira à tarde pega dois ônibus e vai – segundo ela, mais pela filha que cobra do que por sua vontade.

Durante o tempo em que nos encontramos aprendi muito com ela. Aprendi sobre resiliência, fé e amor, fiz tudo para que ela se sentisse amada, admirada e respeitada, pois esses eram meus sentimentos a seu respeito. Sei que ela me entendeu. Toda vez que nos despedíamos ela me dizia que quando estávamos juntas ela se sentia como se estivesse falando com uma mãe, a mãe que ela nunca teve, me chamava de “anjo”, o que me deixava emocionada e sem palavras, pois durante meu tempo na área da saúde, cuidei de muitas pessoas idosas e pensava sempre que eram crianças sem a mãe para cuidar delas. Procurava assim as tratar, com um carinho maternal. Ela havia captado meu sentimento e o acolhido.

De nossos momentos juntas tirei muito aprendizado e uma grande lição: “nenhuma técnica aplicada é tão eficaz quanto a reciprocidade do amor verdadeiro”. Hoje em dia não sei de Dona Sílvia. Depois do final de ano de 2018, quando fiz o recesso, ela não retornou mais. O telefone que eu tinha dela só chama, não conheci sua filha e não sei exatamente onde ela mora. Restaram as lembranças e a certeza do carinho mútuo que sentíamos uma pela outra.